
Prof. Me. Paulo Vitor Souza da Luz
A imagem de Nossa Senhora do Amparo pode carregar, em vez de um cetro real, um fuso de fiar — símbolo da devoção operária em Valença-BA. Este texto investiga como essa interpretação popular ressignifica a iconografia mariana.
A iconografia de Nossa Senhora, em suas diversas representações, frequentemente recorre ao uso de elementos que expressam atributos simbólicos associados à realeza, à maternidade e à intercessão divina. Entre esses elementos, destaca-se o cetro, comumente colocado na mão direita da imagem, como signo de autoridade espiritual e soberania celestial. No entanto, no caso específico da imagem de Nossa Senhora do Amparo, presente na cidade de Valença-BA, observa-se uma peculiaridade: o objeto empunhado pela santa, embora à primeira vista remeta à forma de um cetro, é interpretado por muitos devotos como um fuso – instrumento tradicionalmente utilizado no processo de fiação em teares manuais.
Trata-se de uma imagem barroca provavelmente do século XVIII, cujo valor devocional foi apropriado e ressignificado ao longo do tempo, sobretudo a partir da constituição da Companhia Valença Industrial (CVI), no século XIX. A partir de então, a devoção à Nossa Senhora do Amparo passou a ser progressivamente identificada com a classe operária local, sendo ela proclamada, em âmbito popular, como "Padroeira dos Operários". Nesse contexto, a peça empunhada pela imagem adquire novo significado, não só apenas, ou não mais, como símbolo de realeza, mas como emblema do labor fabril, estabelecendo uma forte associação entre a santa e a fábrica.
Em pesquisa iconográfica, ao comparar a peça de madeira dourada sustentada pela imagem com exemplares históricos de fusos utilizados em tecelagens, nota-se uma semelhança significativa em termos de forma, proporção e acabamento. Ainda que se reconheça a diversidade formal dos fusos – variando de acordo com o artesão, a região de produção e o período histórico –, o objeto em questão apresenta características compatíveis com esse tipo de instrumento, o que reforça a hipótese de uma leitura alternativa da iconografia.
Essa leitura não nega o conteúdo simbólico tradicional da imagem mariana, mas amplia sua capacidade de significação, incorporando elementos da história social e do cotidiano dos trabalhadores. Assim, o suposto fuso torna-se um signo que expressa não apenas a presença da Virgem no universo celestial, mas sua proximidade com a vida concreta das mulheres e homens que compunham o operariado valenciano. A imagem, portanto, assume uma dimensão dialógica, capaz de articular o sagrado e o cotidiano.
Atribuir à imagem de Nossa Senhora do Amparo um fuso em lugar do cetro é, em última instância, uma forma de reinscrever a devoção mariana no espaço da fábrica, vinculando-a à experiência de fé das classes trabalhadoras. É também um exemplo expressivo de como os sujeitos populares reelaboram os símbolos religiosos a partir de suas próprias vivências e inserções históricas. Nesse sentido, a imagem da padroeira se constitui como um objeto de memória, onde se cruzam a arte sacra, a história do trabalho e as formas de religiosidades populares.



